Narciso

Dia 21 de Outubro

Espetáculo Relicário

RelicárioPor Narciso Telles


Uma espectadora falava ao celular: eu estou vendo alguma coisa, não sei bem o quê?!


Este não entendimento diante da apresentação da instalação cênica Relicário, não é estranho. A proposta do Bando Filhotes de Leão, do Rio de Janeiro, apresentada na Piscina da UFMS coloca em questão os cânones do Teatro, as unidades de tempo e lugar são tensionadas, e em seu lugar encontramos o acontecimento cênico.


A instalação é construída de sobreposição de imagens, corpos e palavras que vão despertando sensações [boas e ruins] aos participantes. Os atores não interpretam personagens, ao contrário, partilham ações, radicalizam sua presença e utilizam seus corpos como suporte para a criação artística.


Várias são as entradas para a apreciação da instalação. Uma primeira é pela disposição espacial, o lugar encontrado.


O lugar encontrado [a piscina da UFMS] pauta-se por propor ao espetáculo [ instalação] a contribuição do espaço e de suas características. Todo o espaço passa a ser assumido pelo acontecimento cênico, e tem por princípio básico a percepção e a negociação com seus elementos físicos, a sua arquitetura, as suas qualidades de textura, a sua tipografia, a sua luz – para os explorar.


Relicário segue esta espacialidade. Adentramos ao vestiário para ali re-significarmos o lugar, pela intervenção dos artistas lemos o espaço de outra(s) formas, para além de sua funcionalidade cotidiana. A espacialidade para a instalação é o mote condutor da relação. A proximidade entre os espectadores e, entre eles e os atores proporcionam um outro jogo. Instaura-se uma comunidade. O acontecimento passa da compreensão pela cognição para a compreensão pelo sensível.


Outra perspectiva de leitura é pela presença dos atores. O corpo colocado como questão, desnudo proporcionando aos espectadores a contemplação olhar, do desejo [revelado ou não], de suas belezas, feiúras e marcas. O corpo humano em sua completa dimensão. Aqui evocamos não a idéia de teatralidade, presente dos espetáculos apresentados até agora no FESTCAMP, mas a de performatividade.


Nesta direção vemos o jogo atorial em Relicário como um trabalho onde atuação e performatividade possibilitam a construção de um discurso cênico que tenciona o ‘estar cotidiano’, que se apresenta em sua condição de ato, ou seja, o ator em sua presença como sujeito na construção de um ritual.


A performatividade é um modo de compreensão do mundo calcados na inquietação, na subversão do instituído, uma atitude provocativa e perturbadora, promovendo a co-relação indissociável entre o que se faz e o que se diz.


Como toda a experimentação tem seus riscos: um número excessivo de espectadores que impedem o a apreciação de alguns momentos, a distância entre o ator e o público, especialmente nas cenas no alto da piscina, quando somos convidados a ler frases e palavras, são alguns.


Tendo como ponto de partida a obra Cem Anos de Solidão de Gabriel Garcia Marquez e a pesquisa centrada no gênero fantástico, o Bando sob a batuta de Sidnei Cruz nos leva a um ritual urbano e re-configura as perspectivas de leitura e feitura da obra cênica.


Que cada espectador faça a sua!

Diz Caetano Veloso: o Rei é mais bonito nu!

Dia 20 de Outubro
Espetáculo Os Corcundas


O singelo do grotesco

Por Narciso Telles


Ontem no palco do Teatro Glauce Rocha tivemos a alegria de conhecer dois personagens, dois Corcundas [macho e fêmea] diferentes em seus modos de ser e similares em seu lugar no mundo. Os Corcundas, do Circo do Mato de Campo Grande, encontrou na bufonaria medieval seu modo de fazer teatro.

A bufonaria, tal como o melodrama, o palhaço, o besteirol, pertence ao universo da comicidade. Neste lugar, o bufão explora os instintos humanos em sua forma animal. Sua busca incessante de comida e sexo regem suas ações, trafegando entre o grotesco e o singelo sem a menor compostura. O público são, por eles, considerados pessoas finas, saudáveis, sem deformidades de corpo e espírito. Seu jogo revela o riso do grotesco, da situação de marginalidade e penúria que estes personagens estão submetidos. Os números de bufão apresentados nas praças e ruas são formas encontradas de sobrevivência, daí os bufões estarem sempre em bandos. Juntos conseguem uma brecha, um espaço de aceitação dentro do sistema. São os bobos, os loucos, os velhos, os travestis de rua, os mendigos, os miseráveis...



No espetáculo em questão, os atores-bufões Aline Duenha e Mauro Guimarães constroem seu trabalho na tênua e perigosa relação entre o singelo [o lirismo] e o grotesco [o instinto], com a precisão técnica necessária para a instauração do jogo cômico. O uso consciente dos gromelôs como linguagem falada em cena, desterritorializando estes bufões de um lugar preciso, de uma determinada cultura, oferecem ao público a dimensão existencial dos mesmos. Aline e Mauro conseguem a criar seus personagens, sem exageros ou virtuosismo. Os números circenses, têm o tamanho e o tempo certo de execução, para o deleite do espectador. Presenciamos dois atores-bufões em estado de diversão, de brincadeira. Isto é muito bom.


A direção de Breno Morroni está centrada no trabalho dos atores, criando uma dramaturgia que parte da situação [encontro destes bufões] e as seqüências de ações grotescas ou líricas derivadas deste encontro. A luz e a sonoplastia criam atmosferas entre o cômico e o drama, no qual estes bufos estão submetidos. Funciona na medida certa.


Um bom momento é a conversa do Bufão com Deus, na tentativa de compreender o porque de seu estar naquele situação [perda da companheira grávida], aqui lembramos da frase de um mestre de bufão Phillipe Gaulier: o bufão é o filho que deus disse: se vira no mundo. Ao contrário do palhaço, o bufão não pede palmas o sucesso de um número, mas dinheiro, comida.


Os momentos de platéia poderiam ser mais explorados, buscando tornar os espectadores cúmplices dos personagens. O pão e o macarrão oferecidos poderiam constituir um mote para a revelação da vida de penúria dos Corcundas, situação presente nos tempos de trevas do medievo. O final do espetáculo, no qual os atores despem duas corcundas me parece deslocado do todo, mas nada que prejudique a encenação.


Rimos da deficiência, da não compreensão da linguagem, da diferença.


O espetáculo poderia resvalar para uma mensagem politicamente correta ou pedagogizante do respeito da diferença, tão comum quando os artistas querem educar seu público, mas não é isto que ocorre. Ao contrário, com a força transgressora do bufão e do teatro o espetáculo Os Corcundas vai além. Promove o encontro com as diferenças, a resignificação da morte, do sexo, da pobreza. Temas, ainda tabus no teatro, mas que o espetáculo aborda com uma qualidade impar.


O encontro dos Corcundas do Circo do Mato com Morroni re-coloca no teatro seu aspecto transgressor. A singeleza do humano na poética do grotesco.


Narciso Telles
Bafejando gromelôs

Dia 19 de Outubro

Espetáculo Ser Tão Ser - Narrativas da Outra Margem


O político e o poético em Ser Tão Ser – Narrativas da outra margem
Por Narciso Telles




O espetáculo Ser Tão Ser – Narrativas da outra margem, apresentado pelo grupo Buraco d’Oráculo, segue a tradição político-popular do teatro de rua brasileiro. Em nosso país, a produção teatral de rua carrega historicamente a marca de um modo de fazer teatral no qual as questões sociais e políticas são colocadas e discutidas com o público, restaurando ao teatro sua relação com a cidade.


Nesta esteira as experiências realizadas nos anos 60 pelos CPCs, pelo Teatro de Cultura Popular de Pernambuco, que ancoradas no pensamento do teatrólogo alemão Bertolt Brecht, antecipam as práticas teatrais mais recentes de teatro de rua no Brasil no qual a presença de um teatro político, se faz preponderante.

O Buraco d’Oráculo encena o drama dos inúmeros migrantes brasileiros que percorrem este país a procura de melhores condições de vida. Nas grandes cidades, estes são vítimas de um sistema social violento, coercitivo e excludente, colocando-os a margem na teia social capitalista. Passam pela cena de Ser Tão Ser personagens que lutam por uma vida melhor dentro de seu contexto social. Desta forma, o espetáculo nos é apresentado como um grito contra a opressão, a violência e uma denúncia sobre a situação existente, especialmente [não exclusivamente] na cidade de São Paulo.


Tendo a roda como organização espacial, promovendo como afirma Denis Guenoun, uma outra relação entre os espectadores, pois estes podem também olharem-se uns aos outros e estabelecerem uma comunidade frente ao espetáculo, os atores promovem esta integração. No primeiro momento pela conversa ao pé do ouvido com cafezinho feito e servido na hora, no qual o drama dos personagens é narrado para a platéia e o tema da migração, tão cara ao teatro latinoamericano, nos é apresentado. Nas vozes do pai que vai a procura da mulher e filho ou na mulher que segue sua sina de acompanhar o marido, vamos de onde se nasce até onde se morre. A própria encenação segue este percurso quando o público é convidado se deslocar na praça para assistir a segunda parte do espetáculo.


Nesta, os personagens-migrantes não aparecem com a força de antes, agora estão diluídos, um misto de ator-personagem de linha brechtiana. O trabalho dos atores vão trafegando entre a construção de um personagem- tipo e a própria presença do ator e sua posição sobre o tema em questão. A encenação neste momento ganha um tom de denúncia da situação vivida pelos personagens e de suas lutas comunitárias, do despejo e da nova moradia, no apertado apartamento do conjunto habitacional. Até o público recebe o documento que instrução do despejo. Seremos também vitimas deste sistema?


Como manda a tradição, o Ser Tão Se utiliza os elementos presentes no teatro de rua: músicas conhecidas do público, coro, a chita/algodão cru e a crítica social. Ingredientes que [de]marcam a poética do espetáculo.


Ao fim da função os atores dizem: ‘o povo não sabe a força que tem’.


É justamente esta frase que para mim, pesquisador e fazedor de teatro de rua, levanta questões em torno da função social do artista. O tom de denúncia que o espetáculo tem, me parece crer na perspectiva transformadora do ato teatral, apenas por seu viés político, ou seja, o espectador ganha consciência desta situação e age contra ou a favor do estabelecido. Penso que o teatro deve ir além, deve compreender o homem como sujeito sensível, histórico e crítico e, partindo desta premissa construir um modo de fazer teatral proponha, por sua poética, a instauração de outra possibilidade ética. A percepção sobre o mundo também ser ocorre por meio dos sentidos, outros modos de apreensão da realidade, e nisto o teatro de rua brasileiro precisa também colocar questão.


Se pensarmos que o artista de teatro é um perdedor neste sistema regido pelo capital, podemos modificar nosso posicionamento, em vez de querer ocupar espaços de poder ocuparemos [ e aqui falo no sentido militante] as margens, as brechas para teatralmente partilharmos o que desejamos com o público. Suas [e nossas] narrativas. Seus [e nossos] modos de criação artística. Compreender a perda como possibilidade de salvação [ou de liberdade para o ato poético], pois como diz Amir Haddad: ‘só o teatro salva’... Será?


Narciso Telles
Lembrando esta música: nós fazemos teatro, neste país colorido, descamisado e subnutrido...


Dia 18 de Outubro

Espetáculo Sob Controle


A difícil arte de fazer rir
Por Narciso Telles


O espetáculo Sob Controle, apresentado pelo Grupo Flor e Espinho segue a seqüência dos espetáculos que tem o palhaço como pesquisa de linguagem, nesta edição do FESTCAMP.


Estruturado a partir da dupla cômica, ou seja, o branco (que manda) e o augusto (o tonto que obedece), os palhaços Milito e Mixirico tentam apresentar um número, mas acidentes de percurso dificultam este objetivo.


O grupo desenvolve desde 2009 a pesquisa sobre a palhaçaria e na ‘descoberta’ das características fundamentais destes palhaços. Tal premissa fica visível no espetáculo pela rigidez dos tipos diante das adversidades da rua e da participação do público presente na Praça do Rádio.Clube.


Sob Controle carece de uma dramaturgia que nos ofereça os reais objetivos daqueles palhaços irem aquele espaço para fazer aquele número. Esta indefinição deixa o público distanciado e numa situação de estranhamento ao que se apresenta diante dos nossos olhos. A comicidade, quando produzida, esta centrada nas conotações sexuais, de leitura rápida e fácil dos espectadores.


O jogo da dupla cômica, diferentemente de Didi & Dedé, Gordo & Magro, Oscarito & Grande Otelo, para citar alguns exemplos, não se estabelece pelas contradições comportamentais dos tipos ou diferenças físicas: gordo/magro, alto/baixo, branco/negro etc...que são lugares em potencial de produção de comicidade. Em Sob Controle estão centrados no palhaço mal-humorado e outro quase ingênuo. Mas que não mergulham em profundidade para perceber o quão ridículo podem ser estes palhaços em suas contradições. Especialmente quando o espetáculo nos oferece a possibilidade de rir das relações de poder estabelecidas.


Aproveitar mais as situações apresentadas, produzir cumplicidade com o público [aqui incluo a população de rua], ‘sentir a cidade’, localizar culturalmente os tipos branco e augusto possibilitando uma maior aproximação com o público local, podem ser pistas para que Sob Controle ganhe mais força e que Milito e Mixirico possam ao fim do espetáculo receber e retribuir o carinho do público desejo de todo o palhaço.


Por fim uma reflexão: o palhaço como uma figura da transgressão ordena seu público. Educa-o para aplaudi-lo em momentos definidos pelo próprio palhaço. É isto que queremos como artistas? Um público ordeiro, adestrado para aplaudir quando digo e passivo a tudo? E o palhaço quer isto?


Estas são questões que devem permear aqueles que se propõem a trabalhar na difícil arte de fazer rir.


Narciso Telles
Dia de sol em Campo Grande onde reflito sobre a função transgressora do Teatro.

Dia 17 de outubro

Espetáculos "Café pequeno da Silva e Psiu" e "In Conserto"


A palhaçaria com seus (tre)jeitos e espaços

Por Narciso Telles


Ontem o dia no FESTCAMP foi dedicado à arte do Palhaço. Dois dos mais importantes grupos cariocas apresentaram seus espetáculos trazendo a relação entre a tradição e contemporaneidade desta arte para a Praça do Rádio e o palco do Teatro Glauce Rocha.


A palhaçaria, antes restrita ao universo do picadeiro circense, há muito tem ocupado outros espaços e adentrado nas diferentes linguagens artísticas, indo do cinema mudo ao teatro contemporâneo. A pequena máscara vermelha tem ganhado configurações diversas pela prática dos coletivos cincenses-teatrais que localizam suas pesquisas no resgate das tradições circenses ou as redimensionam para um diálogo com a cena contemporânea. Seja qual for a escolha, o importante é a presença do riso, da gargalhada, da poesia e humor que aqui se faz presente.


Na Praça do Rádio Clube:


Café Pequeno e Psiu, do Grupo Off-Sina instaurou a tradição da dramaturgia de picadeiro, dos charlatões ou vendedores mambembes que percorriram o Brasil oferecendo a preços populares medicamentos e ervas milagrosas. Abriam sua mala e começam seu trabalho. Assim é a presença de Café Pequeno e Psiu: um banco, uma mala [ohh!!!], aberta sempre com a participação da platéia, e o espetáculo acontece.


O jogo cômico no espaço aberto, precisa “sentir a cidade”, pois se apresenta ao transeunte sob a tensão entre uma coerência interna do espaço urbano e a possibilidade de emersão de tendências espontâneas nestes modos de apreensão. O palhaço [de rua] não está ‘protegido’ pela estrutura e práticas sociais que o teatro [espaço arquitetônico] nos oferece. No espaço aberto as interferências são múltiplas e em certos momentos aterradoras, tanto pela inércia do público em relação ao jogo, quanto a força de presença da população de rua que cria suas próprias regras de participação. A cidade contemporânea se constitui como o local destinado às mazelas do sistema, ou seja, àquela parcela da população excluída do avanço do capital global e da lógica de consumo capitalista.


Neste sentido, o artista que toma a cidade como objeto/espaço de trabalho/criação tem por objetivo, uma dupla relação com a cidade: de um lado expor as formas de vida da cidade em seu aspecto imaginário, e de outro reconquistar a coesão social por sua intervenção artística. Reinstaura-se a reaproximação entre arte e vida.


E é na tradição do picadeiro que esta aproximação se estabelece. Café Pequeno inicia seu trabalho criando entre ele e os espectadores uma relação mais horizontal, mais próxima e fundamental para a seqüência de situações ou gags apresentadas no decorrer do espetáculo. Um entra e sai de espectadores nos variados números colocam o palhaço sempre em uma situação de risco, pois como a comicidade está centrada nesta relação é o próprio espectador, sem saber, é que re-cria o espetáculo a cada momento. O figura palhaço ai fica entre um mestre de cerimônia que amplia o ridículo presente na natureza humana [público] e o próprio palhaço que se expõe, que se revela tanto em seu aspecto grosseiro como lírico.


Café Pequeno e Psiu tem percorrido diversas cidades brasileiras, e aporta em Campo Grande com a firmeza de quem já possui, não somente o domínio, mas o entendimento da arte de rua, dos artistas mambembes e populares que vendem ‘seu peixe’ atrás do seu ‘ganha pão’, e isto Café Pequeno, como tão Grande Otelo, sabe fazer muito bem.


No palco do Teatro Glauce Rocha:


O Teatro de Anônimo, um dos mais conhecidos grupos cariocas de palhaços e palhaças, trouxe ao palco do Teatro Glauce Rocha seu espetáculo In Conserto. Trata-se de um encontro [ou desencontro] de três Palhaços – Seu Flor, Buscapé e Prego – para realizar um Grande Conserto para o público presente. Daí tudo pode acontecer: da dificuldade de subir na cadeira até a morte dos apitos até finalmente assistirmos o grande conserto de acordeon e trompetes.


O In Conserto promovido pelo Anômino, na verdade foi de gargalhadas. Com a maturidade artística conquistada por muito trabalho sobre a arte do riso, e digo isto porque os conheço deste Cura-Tul, o trio nos apresenta também uma sequência de gags da tradição clownesca, com uma pitada bem carioca de humor, visto a bandeira do Flamengo, para delírio de uns e indignação de outros.


Este espetáculo criado a partir do Encontro do Anônimo com o palhaço Nani Colombaioni, um mestre desta arte, já tem uma trajetória de seucesso nacional e internacional que podemos verificar pelo jogo estabelecido entre os palhaços e o público e no domínio técnico dos números.


Algumas gags poderiam ter seu tempo um pouco mais distendido, por exemplo, o momento que a palhaça Buscapé passa diante dos outros dois palhaços agonizando pela perfuração do guarda-chuva, poderia retornar mais uma vez antes de revelar o jogo. Produzindo um momento de estranhamento e depois o efeito cômico da revelação do truque. Como também o clímax da Grande Ópera, numero de inicio do espetáculo. O trio cômico ao longo do espetáculo alterna entre os tipos clássicos da clownaria: branco e augusto proporcionando uma variação interessante para o espectador na criação do efeito cômico, ou mesmo acontece nas intervenções com o público, realizadas sempre em momentos precisos e no tempo certo.


Nada tira o mérito e o brilho do Teatro de Anônimo [gritos histéricos] e seu In Conserto, e graças a eles, a arte do Palhaço no Brasil tem ganhado terreno e respeito nacional e internacional.


Narciso Telles
Após um dia de risos destes anjos dos picadeiros, palcos e praças.

Dia 16 de outubro

Espetáculo Raba da Cabra

RabaCabra ou Onde se provoca o riso?
Por Narciso Telles
Segundo dia de FESTCAMP.

O primeiro espetáculo de Campo Grande a se apresentar foi o Palhaço Dentinho. Na tradição do jogo clownesco os números ou gags vão configurando a trajetória narrativa do espetáculo e estabelecendo o jogo do palhaço com o público.

Na história, Dentinho, aprendiz de mágico, tenta oferecer aos seus espectadores um GRANDE NÚMERO, porém muitas mágicas não funcionam e só ao final ele percebe o erro na palavra e corrigi: ABRACADABRA, aí todas as mágicas acontecem. Nesta estrutura narrativa, o espetáculo é construído em praticamente quase todos os números, com a participação da platéia em cena. E é justamente aí que reside a questão: onde o jogo cômico se estabelece? Rimos do quê? Do palhaço? Da relação estabelecida com os espectadores? Ou da situação de fragilidade ou tensão com que vemos alguns espectadores diante dos nossos olhos? São perguntas simples, mas de respostas complexas e cabe a cada palhaço respondê-las em seu trabalho.

Podemos rir da humanidade presente na figura do palhaço e reconhecer neste personagem ou estado cênico, as fragilidades, dores e alegrias, esperanças e desesperanças, as contradições do humano. Aí reside uma das mais importantes funções do palhaço na cena contemporânea: restaurar a humanidade por meio do jogo cômico.

O Palhaço Dentinho exerce seu ofício com presteza, e, ao contrário de muitos, não resvala para o jogo ‘infantilóide’ com as crianças e adultos presentes. Afinal, se compreendemos que a criança é uma fase do sujeito adulto, podemos aceitar que ser criança, ter ações infantis, mesmo já em idade adulta, não ter o domínio completo da linguagem, fazem parte da natureza humana. Este pode ser um bom argumento para que a arte do palhaço ganhe o respeito necessário, como muito bem colocou Dentinho no final do espetáculo.

O ponto alto do espetáculo é o número do coro de sinos. Este poderia ser mais explorado, com outras músicas e até mesmo com músicas regionais, que localizem culturalmente a figura do palhaço. O mesmo poderia também ser feito com as músicas gravadas que também são utilizadas em todo o espetáculo. Porque não proporcionar ao espectador outras sonoridades, além das clássicas músicas circenses, já utilizadas por palhaços do mundo todo? Uma pesquisa musical de maior profundidade enriqueceria muito o trabalho.

Mesmo sem o clímax necessário para o GRANDE NÚMERO, tão esperado num espetáculo clownesco, já que rapidamente as mágicas são resolvidas e o palhaço sai de cena, a apresentação do Palhaço Dentinho provocou lágrimas em crianças, jovens e idosos presentes na Lona do Festival, para a alegria do palhaço que é ‘vê o circo pegar fogo de tanto gargalhar.

Narciso Telles, tarde com pouco sol em Campo Grande

Dia 15 de outubro

Espetáculo Esparrela


O urubu...a corda... e o ator
Por Narciso Telles

No momento em que a cena contemporânea apresenta uma multiplicidades de relações entre o teatro e as demais manifestações artísticas e coloca a noção de presença cênica, como a relação mediada pelo corpo do ator diante do espectador, em questão. O espetáculo Esparrela encenado pelo Grupo Bigorna, recoloca para mim a pergunta: o que é necessário para se fazer teatro? Ou melhor: o que se apresenta como uma possível característica primeira do fenômeno teatral?

Um ator, um tambor, uma bela narrativa e um tapete (?). Diante destes elementos, propostos pelo espetáculo, podemos acionar conceitos como: o teatro essencial de Denise Stocklos, o teatro vivo de Peter Brook, o teatro pobre de Grotovski, ou simplesmente o TEATRO no que há de mais comunicativo.

Ao acompanhar a história de Arquimedes, uns destes inúmeros urubus que povoam os céus dos sertões brasileiros, e de seu adestrador Manoel, sou conduzido a lugares, povoados e ações de demarcam o espaço ficcional da narrativa e desvelam a condição animal de Arquimedes. Aqui como, na metáfora de Leonardo Boff, sobre a condição da águia e da galinha, a corda aparece com símbolo da condição humana, a prisão, o elo que uni o urubu e seu adestrador.

Desvelando o mundo dos homens e toda a sua crueza, a morte também é condição de vida na narrativa apresentada. Nos familiares de Manoel, assassinados em incêndio criminoso e no próprio adestrador que, picado por uma cobra, espera em agonia a morte chegar. Como diz Manoel de Barros ‘no alto da árvore mais próxima, antes mesmo do bicho [o adestradorManoel] encomendar, urubu já discuti, em assembléia com os primos, quem que vai no olho, quem que vai no ânus.’ Arquimedes vai no olho, devora-o, depois a perna, no ritual antropofágico, corta a corda. Em última análise, é a morte que possibilita que Arquimedes alcance sua liberdade.

A liberdade, em Esparrela, se materializa na condição de voar, de ver o mundo de outra forma, de uma nova condição.

Do ponto de vista da encenação, o trabalho está centrado na instauração da presença do ator-personagens-narrador em sua condição primeira, física, corpórea-vocal, sem artíficios ou elementos de espetacularidade que possam nevoar nosso olhar-ouvido, diante de jogo e da narrativa. A opção de colocar o público no palco bem próximo ao ator cria um grau de intimidade com a cena, proporcionando momentos de uma ‘quase’ entrada dos membros da audiência no espaço ficcional, ou seja, não espectadores, mas cúmplices das confissões de Arquimedes, ou mesmo, urubus que se preparam para também saborear a carniça. Além do ator, o único elemento presente em cena, já que o tapete ocupar um lugar de marcação espacial é o tambor. Sua função é modular a narrativa, modificar ritmos e andamentos do texto. Fora o tambor Esparrela também utiliza músicas gravadas, o que durante a encenação funciona em alguns momentos e em outros são desnecessárias, pois a própria palavra já conduz os espectadores para os momentos de atmosferas ‘dramáticas’. A luz é um elemento da encenação que produz espetacularidade, especialmente nos momentos em que o foco está fechado no ator, intensificando a narrativa e a jogo interpretação.

O grande mérito do espetáculo Esparrela está na força do trabalho atoral e na qualidade com que é apresentado. Numa narrativa densa, volumosa como a história que assistimos, é a presença do ator, com toda a sua maturidade artística e de vida que dinamiza a força motriz do teatro. Acompanhamos atentos a instauração do fenômeno, cremos no jogo e juntos o teatro assumi seu lugar e seus riscos.

Riscos como a rapidez e a projeção da voz na entrada do personagem e da narrativa, que dificulta a percepção do espectador no inicio do da função. Como utilização do tambor, que poderia ser mais imprevisível para o público, quase algo inesperado, e como momentos de pausa, breves, onde possamos criar nossos adestradores para depois devorarmos e voarmos...

Voar, ação finalizadora da função.

E novamente me lembro de Manoel [o poeta]: ‘como eles [os urubus], sobre as pedras, eu cato restumes de estrelas. É muito casto o restume’.

Narciso Telles, manhã de um dia nublado em Campo Grande - MS
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NARCISO TELLES - É ator, performer, diretor, professor do Curso de Teatro e do Programa de Pós-Graduação em Artes da Universidade Federal de Uberlândia (UFU), Doutor em Teatro pela UNIRIO (2007). Pesquisador do Núcleo de Criação e Pesquisa Teatral e membro do Coletivo Teatro da Margem. Dirigiu recentemente os espetáculos Maria Borralheira (Uberlândia, 2007) e Mistério do Fundo do Pote (O Imaginário, Porto Velho, 2006) e Canoeiros da Alma (Uberlândia, 2008). Organizador dos livros: Teatro: ensino, teoria e prática (EDUFU, 2004), Teatro de Rua: olhares e perspectivas (E-Papers, 2005) e Pedagogia do teatro e o teatro de rua (Mediação, 2008). Foi curador em duas edições do Encontro Nacional de Teatro de Rua de Angra dos Reis.