Walter


Dia 22 de outubro
Espetáculo Sessenta Minutos para o Fim 


“Sessenta minutos para o fim”

Por Walter Torres


O Grupo Garagem 21 de São Paulo trouxe ao FESTCAMP sua montagem “Sessenta minutos para o fim”. Esta montagem tem por objetivo falar das relações de poder na sociedade contemporânea. A sinopse informa ainda que a obra cênica é inspirada em Fernando Arrabal e Samuel Beckett. E do ponto de vista da forma, a peça utilizaria a linguagem dos quadrinhos. E, resumidamente o que parece interessar a esse coletivo é a “história de dois Atores condenados por um Coelho a realizar uma apresentação teatral para um público que nunca aparece”.


Estes elementos colhidos da sinopse da programação nos orientam para uma produção que se distingui por querer ser contemporânea dentro de um registro específico em meio às tendências atuais. O projeto de montagem ou a proposta de encenação esboça suas filiações e seus propósitos, os quais colaboram na constituição da sua substância teatral, cujo fim é a narrativa da “história de dois Atores condenados por um Coelho a realizar uma apresentação teatral para um público que nunca aparece”.


O espectador mais atento, naturalmente pode desfrutar das apropriações que o grupo faz das obras de Fernando Arrabal e Samuel Beckett, conforme é anunciado no resumo do espetáculo. É difícil, entretanto, compreender a relação que o grupo busca entre esses dois autores tão distintos e aparentemente irreconciliáveis entre si. Na verdade, o que o grupo faz, é pegar emprestado figuras da dramaturgia desses dois autores para explorarem as mesmas na peça que querem construir. Porém, o que se percebe é unicamente a apreensão da aparência dessas mesmas personagens, e a reprodução agora, à maneira do grupo, das relações inter-subjetivas dessas duplas de personagens que de fato transitam, nos textos originais, dentro de um registro que explora as relações de poder limitadas às circunstancias do roteiro elaborado, tanto por Beckett quanto por Arrabal.


Quando o grupo afirma que trabalha com a linguagem dos quadrinhos e dos desenhos animados para contar sua história, percebemos a coerência da presença em cena de um “coelho” em tamanho humano, cuja fantasia é portada por uma atriz. A estranheza desta figura de um “Pernalonga” em cena é perceptível desde o inicio do espetáculo. Entretanto, o espectador deve ter o direito de se perguntar como relacionar essa celebridade do desenho animado com os anônimos de Arrabal e Beckett?


A montagem sugere uma tipologia, ou seria uma estereotipia (?) que se avizinha do teatro performativo ou contemporâneo graças ao furor da dinâmica cênica: música alta (rock-tecnô) desde o inicio; luz desenhada pela fumaça; atores fortemente caracterizados por maquiagem e figurino que lhes confere um perfil apocalíptico ou a ausência de uma identidade específica (Hann e Clov); um lugar que é o próprio palco; e um Pernalonga em escala humana. A essa descrição ajunte-se uma maneira de dar o texto, pelos dois atores, excluindo-se o Pernalonga que não fala, extremamente, rápida com vozes sempre altas, para suplantarem a trilha sonora, e sempre recheadas de flagrante teatralidade. Tudo colabora para evitar qualquer vestígio realista, naturalmente, pois estamos em contato com outro plano e registro de teatralidade.


Apesar dessa densidade que se coloca desde o abrir do pano, o espectador fica um pouco atônito diante de tantas possibilidades, de tantos signos que não consegue se fixar no objetivo do grupo, desfrutar da “história de dois Atores condenados por um Coelho a realizar uma apresentação teatral para um público que nunca aparece”.


As ações perpetradas pelos atores abrem uma fissura que distancia o espectador do que transcorre no eixo sociedade contemporânea e palco. Advém daí a dificuldade de localizar a própria sociedade contemporânea e as relações de poder. Quais seriam os motivos que levam o Pernalonga a ter sob a sua responsabilidade a condenação desses dois Atores?


Hoje, apesar das inúmeras tendências cênicas fala-se muito no emprego da palavra dramaturgia, sempre seguida de um complemento: “dramaturgia do corpo”; “dramaturgia da luz”; “dramaturgia da cena”; “dramaturgia do ator”; “dramaturgia do figurino”, e mais recentemente ainda a “dramaturgia da voz”.


Etimologicamente, drama é oriundo do grego e significa ação. Dramaturgia, em si, seria por definição particular “a arte ou a técnica da composição dramática”. Mas qual composição dramática em tempos, predominantemente, pós-dramáticos? Em primeiro lugar, esta arte da construção ou da des-construção dramática pressuporia certos elementos integrantes desta mesma composição ou des-composição: personagem; corpo; voz; intriga; ação dramática; tempo; espaço; diálogo; etc.


Os elementos estão todos lá, engendrados pelo talentoso Grupo Garagem 21, porém esvai-se o sentido, a direção que o grupo queira orientar para leitura de sua encenação. O talento dos atores não é suficiente para suplantar as turbulências semânticas que parecem tomar conta da cena como uma névoa espessa que dificulta a entrada do olhar do espectador, mesmo que seja nos últimos sessenta minutos para o fim.

Dia 21 de outubro

Espetáculo Crü

Cru do princípio ao fim!

Por Walter Torres

A Companhia Plágio de Teatro é um grupo brasiliense que existe desde 2007, resultado do encontro entre Alexandre Ribondi e Sérgio Sartório. Para conhecer um pouco mais sobre o grupo e sua trajetória, o leitor pode consultar http://ciaplagiodeteatro.blogspot.com/


O Espetáculo que o grupo trouxe ao FESTCAMP foi “Cru”, que é uma criação de 2009, cuja história foi recentemente adaptada para o cinema http://www.festbrasilia.com.br/mostraprimeirosfilmes/primeirosfilmes/cru.

No 44o. Festival de Brasília do
Cinema de Brasileiro, em 2010, “Cru”, em sua versão cinematográfica saiu vitorioso e reconhecido, sendo contemplado com o Troféu Câmara Legislativa http://www.blogdomax.com.br/deus-e-cru-levam-premios-da-camara-legislativa

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A cena é muito simples. Trata-se de um pequeno açougue. Ou uma vendinha de beira de estrada, empoeirada vizinha à Brasília. Aí seria o onde em que transcorre a ação. O tempo é o de uma espera ou de uma chegada? O seria o tempo de um encontro, ou de um desencontro? Depende do ponto de vista adotado. Os personagens: a dona do açougue; um pistoleiro; e uma figura misteriosa que vem encomendar os serviços do matador de aluguel. Daí em diante a história toma um rumo inesperado sempre com algumas reviravoltas que vão surpreendendo o espectador até o seu desenlace final.


Partindo de um código realista sintético, enxuto, ação e diálogo se unem formando um todo cru, duro, seco e áspero, rascante, como a realidade interior de seus personagens. Representação de uma parcela da população de um país com fortes desigualdades sociais, que ainda, apesar do combate à fome, não conseguiu passar da etapa mental e emocional do crú ao cozido. Por que será? O que nos falta?


O espaço do açougue poderia nos remeter aos ambientes do teatro naturalista da segunda metade do século XIX. Neste período os autores teatrais acreditavam que o meio físico, isto é, o ambiente, condicionava o comportamento dos homens e por isso caprichavam nas suas reproduções acerca dos espaços da realidade, na tentativa de com suas encenações, denunciar as misérias da injustiça social.


Também dentro deste principio, os autores do Naturalismo no teatro, como Emile Zola, imaginavam seus personagens condicionados por fortes traços de uma hereditariedade, uma herança genética maldita que justificaria, segundo eles, os atos hediondos dos personagens no presente da ação, apresentada diante dos olhos atônitos do espectador.


Mas não estamos mais nesse tempo e as convenções teatrais se atualizam muito rapidamente, conforme avança a mentalidade de quem faz e conforme a mentalidade de quem assiste. Os modos de fazer e ver teatro hoje são muito distintos em relação ao passado. Porém, como dizia o próprio Zola, no final do século XIX em meio à sua campanha por um teatro experimental: “Não existe um teatro! Existem vários teatros, e eu estou procurando o meu!”.


Assim como o autor de “Thérèse Raquin”, a Cia Plágio de Teatro está à procura do seu teatro, um teatro desconfortável. Ou desagradável, como diria Nelson Rodrigues? Seja como for, a Cia Plágio de Teatro nos lega uma encenação intensa e concisa da história deste núcleo familiar esfacelado, afetado pela barbárie, a culpa, o ressentimento... todos esses sentimentos pouco virtuosos filhos do desamor. O ajuste de contas, que é o objeto da história narrada pelos autores e cruamente encenada pela direção, é só a ponta de um dos fios da memória. O ressentimento, o ciúme, a mágua e tantas outras dores que favorecem a construção do drama individual nascem deste comportamento imprevisto e imprevisível. Nascem de uma pulsão, do passado destas personagens de beira de estrada. Tipos que podemos imaginar quando contemplamos, confortavelmente, pelas janelas de um ônibus, ao cruzarmos as rodovias do país, de qualquer interior, não só daqui, aquela birosquinha mal iluminada.


Essa dimensão, calorosamente, humana que advém da memória familiar se adensa a cada passo, a cada cena. Não há efeitos sonoros ou visuais. A cor e o tom são crús. Com uma iluminação que não se altera e uma tensão que caminha na direção do juízo final ou seria da (des)razão? Do princípio ao fim da ação, a situação onde estão mergulhados estes personagens é conduzida pelo trio de atores de maneira irretocável, num exercício caprichado e maduro de precisão e de contenção em suas atuações.


A vingança é aqui, um prato que se come frio e, neste caso, também crú.

Espetáculo Tenda das Adivinhações

O charme do ilusionista
Por Walter Torres

O público do FESTCAMP foi convidado a visitar a tenda onde se apresentou Rick Thibau, o premiado mágico que vem atuando no ramo do ilusionismo e da prestidigitação desde 2004. A trajetória de Rick Thibau apesar de, aparentemente curta para experiência de um mágico, já pode ser considerada como reconhecida e êxitosa pela comunidade, tendo em vista sua intensa atuação e o conjunto de atividades que desenvolve ao atender aos mais diversos convites nacionais e internacionais. Sua trajetória e atuação podem ser conferidos em http://www.rickthibau.com/ e em http://www.tendadasadivinhacoes.blogspot.com/

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Nas breves sessões oferecidas no FESTCAMP, uma plateia composta por poucos espectadores se revezou para conferir de perto as habilidades deste mestre da mágica, em íntimas sessões. Esta é a modalidade de magia chamada de “close-up”. Acompanhado por um fiel colaborador, uma espécie de bufão medieval, seu assistente, este mago nos surpreende pela capacidade de fazer seus breves números e interagir com a micro-platéia em espaço tão exíguo. Pode-se dizer que o objetivo é alcançado.

A composição da atmosfera, desde a tenda, encimada por uma coruja, passando pelas músicas, as intervenções pontuais do bufão e a própria apresentação do mágico em si, nos transportam para um lugar de memória e um tempo onde se mistura à lembrança da infância com o eterno mistério dos truques e passes de mágica que gostaríamos de conhecer.

Transformar pedra em pão; Adivinhar pensamentos; levantar a mesinha; fazer levitar seu próprio corpo, esses são apenas alguns dos exemplos de truques realizados por Rick Thibau de forma muito tranqüila, familiar e natural.

Apesar do excessivo calor que lhe consumia, o mágico-galã não descuidava em perscrutar a cada membro da micro-plateia na tentativa de, com seu olhar sagaz, esquadrinhar nossas reações aos mistérios sugeridos.

Os artistas de teatro do passado se confundiam bastante com os mimos, e jograis, mágicos e charlatões que se apresentavam em feiras para diversão circunstancial da população. Parece que foi um pouco dessa atmosfera medieval que o diretor Breno Moroni se serviu para sugerir ao trabalho de Rick Thibau a sua contribuição à direção desta “tenda das adivinhações”, que cumpre seu papel nos lembrando de que “mistério sempre há de pintar por aí”!


Dia 19 de outubro

Espetáculo A Lição


“A Lição” de Eugène Ionesco - Pelo Núcleo Cena Viva

Por Walter Torres

Eugène Ionesco (1909-1994) foi um escritor de origem romena que escreveu grande parte de sua obra em francês, tendo vivido igualmente na França. Em 1950 estreou em Paris “A lição” e “A cantora careca” sendo essas peças muito mal recebidas pela critica e pelo público por se tratarem, naquela época, de uma nova dramaturgia muito estranha, esquisita.


Seus textos são, em certa medida, uma parodia do teatro convencional. Eles marcaram durante muito tempo o teatro contemporâneo dos anos 1950 e 1960, e fez a fama de Eugène Ionesco como um dos pais do dito teatro do absurdo, expressão, sobretudo, cunhada por Martin Esslin graças à publicação de seu livro em 1961, “O teatro do absurdo”.


Nesta obra o estudioso analisou, à sua maneira, a gênese da maioria dos dramaturgos europeus do dito teatro do pós-guerra. A dramaturgia de Ionesco é então marcada pelo nonsense, pelo grotesco, pela sátira um pouco metafísica e tantas outras bizarrices lingüísticas em relação à uma dramaturgia convencional. Trata-se de um teatro fortemente marcado pelas conseqüências da destruição causada pela II Guerra Mundial.

Nesse sentido tem-se que levar em conta a experiência da Guerra como um fator a ser considerado nas motivações para essa nova dramaturgia, e assim encontramos temas como: a ruptura dos vínculos relacionais; a alta vigilância; a superviolência explícita e dissimulada; a ausência de Deus; a presença do progresso; o choque diante do autoritarismo e da estatização da ditadura social; a solidariedade e seu contrário; a insegurança; o desenraizamento da pessoa humana e sua transformação num ser errante sem lugar ou a procura de um lugar; o pânico da prisão ou da deportação; a destruição da linguagem e a impossibilidade da palavra poder dizer algo que repare o horror desta guerra e da sua destruição.

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O espetáculo apresentado pelo Núcleo Cena Viva tem o mérito de se debruçar exatamente sobre uma dessas peças, “A lição”. Revisitar a dramaturgia de Ionesco é sempre um grande desafio para os atores e uma importante iniciativa para se pensar a própria condição da dramaturgia hoje.


Entretanto, a encenação do Núcleo Cena Viva privilegia de imediato uma precipitação do mundo absurdo que virá paulatinamente no decorrer do dialogo entre Professor e Aluna. Desde a entrada da jovem em cena, visto que a “arrumação” da sala pela Governanta na cena inicial sugere uma espécie de antecedente da ação, a jovem Aluna já anuncia um estranhamento comportamental. Esse estranhamento no seu jeito de ser, já exacerbado, inibe o crescendo da “ilogicidade” presente no próprio diálogo, e que aos poucos se revelaria com o andamento da própria ação dramática, o ato de tomar e dar uma lição.



A situação em si é muito simples, e para compensar essa singularidade da situação dramática é que Ionesco engendra um dialogo, aparentemente absurdo, que desintegra a linguagem ao mesmo tempo que exaure Professor e Aluna ao longo da ação. Trata-se de uma estratégia estrutural do ponto de vista da dramaturgia que quer refletir sobre o caos universal, a ausência de uma imagem harmoniosa do homem após o horror da Guerra. A questão é que tudo isso se dá no âmbito da palavra. A violência física só se estabelece a titulo de conclusão, no encerramento da ação, nas conseqüências de se dar ou tomar uma lição. E aqui a metáfora é abundante: o assassinato da linguagem; o assassinato do novo pelo velho; a morte do feminino pelo masculino; etc.

Se por um lado, as conotações sexuais são as menos interessantes de serem exploradas por serem as mais óbvias e as menos sutis, por outro lado, são as mais elementares de serem explicitadas enfatizando o sistema dramático do próprio Ionesco, ao mesmo tempo que passa a reduzi-lo: exibição - sedução - provocação - consumação do ato sexual – castigo – culpa e absolvição. Ora, no arco da ação de dar e receber uma lição, como formula o autor há muito mais a ser explorado pelo jogo dos atores que não demonstram nuances vocais à descobrir inclusive o cômico presente em certas passagens.

O absurdo da situação deveria ser revelado por uma certa normalidade das condutas dos comportamentos humanos representados. A aparência de natural ou a naturalidade da situação é que vai sendo alterada pela progressão da tensão do conflito que se organiza no diálogo, e que vai se tornando cada vez mais esgarçado, disperso, fragmentado, como as consciências dos seres ficcionais.


Finalmente, se o teatro psicológico, fortemente estruturado antes de 1945 é fundado na linguagem e na situação, como atestam as correntes Naturalista e Simbolista, essa Nova Dramaturgia, esse Teatro do Absurdo do qual Ionesco participa, desde 1950, toma a situação e a linguagem e as transformam em objeto do próprio teatro. Situação e linguagem passam ao primeiro plano da cena deixando atrás de si uma segunda camada, formada pelo papel e os elementos que até então estruturavam a dramaturgia. Há um deboche nítido, uma crítica à palavra, ao uso da língua, do idioma, da palavra no tratamento social, seu significado e significante. Assim, os elementos que constituem o texto de Ionesco passam a ser problematizados de dentro da própria dramaturgia. Se em “A lição” é a própria ação de dar e receber uma aula que é encenada, o autor passa a desfrutar de uma liberdade que mescla conteúdos dramáticos e cômicos que passam despercebidos pela encenação e atuação dos atores do Núcleo Cena Viva.

Espetáculo A Roupa Nova do Imperador

“A roupa nova do imperador”


Grupo Teatral Unicórnio
Por Walter Torres


Hans Christian Andersen foi um autor dinamarquês que viveu na segunda metade do século XIX e inspirado pela literatura oral recolheu e escreveu diversos contos infantis que o imortalizaram: O Patinho Feio, A Caixinha de Surpresas, Os Sapatinhos Vermelhos, O Pequeno Cláudio e o Grande Cláudio, O Soldadinho de Chumbo, A Pequena Sereia, A Roupa Nova do Imperador, A Princesa e a Ervilha, A Pequena Vendedora de Fósforos, A Polegarzinha, dentre outros.


Adaptando “A Roupa nova do Imperador” o Grupo Teatral Unicórnio conta com propriedade e clareza a história do imperador vaidoso. Ambicionando ter uma roupa tão rica, tão deslumbrante e maravilhosa, o Imperador acabou sendo logrado por falsos alfaiates, que lhe fizeram uma roupa com um tecido que ninguém via. Isto é, somente “os tolos” não eram capazes de vê-la. E como ninguém quer passar por tolo ou fazer papel de bobo, todos pactuaram desta fantasia extravagante. Menos um menino, que vendo passar o Imperador com seu cortejo, na sua inocência e pureza de criança gritou: - O Imperador está nu! E pouco a pouco a notícia foi se espalhando. Dessa forma, o Imperador percebeu, imediatamente, que aquela manifestação era a revelação da expressão da mais exata verdade. Ele estava nu! Mas como era o Imperador... o Senhor absoluto daquela região, a manifestação viva do Poder da autoridade, detentor do capital e dos meios de produção, manteve a fleuma, e impassível continuou o seu cortejo até o fim.


Para se manter no poder é preciso, mesmo numa situação de crise como a descrita no conto, manter as aparências apesar de todas as evidencias contrárias. É um pouco o que acontece na realidade, quando fazemos vista grossa e todos pactuamos em silencio uma extravagante mentira; visto que nem sempre acode em nosso socorro, os olhos libertos e o coração puro como o de uma criança para dizer: O Imperador está nu!


Algo parecido acontece no reino do teatro, quando dele nos alienamos. Isto é, quando acontece às vezes do teatro estar nú e pactuarmos, por ignorância ou por comodidade, involuntariamente, com a própria convenção teatral.


Neste sentido o Grupo Teatral Unicórnio, na sua adaptação do texto, recheada de canções explica ao espectador mirim que o Imperador, ao final da peça, se “arrependeu” do que fizera.


Talvez aqui a confiança no discernimento infantil tenha titubeado e a vontade de ser claro e moralista tenha se imposto para dar uma conclusão “edificante” na adaptação do conto à cena.


Essa mesma vontade de afirmar, no lugar de sugerir pode ser percebida no uso das projeções que sinalizam os espaços da ação: exterior do castelo; sala do trono... Alie-se a esses momentos o sonho “cinematográfico” do Imperador. Deste uso das projeções, aquele momento que parece mais adequado à narrativa, como um todo, é a seqüência, onde os dois Vigaristas fogem e são perseguidos desde a saída do teatro até as passagens pelos pontos da cidade.


A direção dirige também a imaginação do espectador infantil, que certamente vem ao teatro para exercitar a sua imaginação, aquilo que só ele pode ver graças à força poética do próprio teatro. Outro ponto desnecessário, mas que se compreende como um procedimento à mão foi o de resolver com a projeção o pesadelo real. Talvez ajudasse a pensar a cena teatralmente à leitura de algumas passagens de peças de Shakespeare. Em seus textos, reis vilões como Macbeth ou Ricardo III são açoitados por sonhos terríveis, onde seus atos nefastos são compensados por imagens que afloram das suas próprias (in) consciências quando adormecem.


Emprestamos esse exemplo a Shakespeare, pois não há diferença entre teatro infantil e teatro adulto a não ser, em relação à forma e ao conteúdo, pois a atitude criativa e a seriedade da direção e do jogo dos atores devem ser as mesmas. Nesse sentido, não é necessário infantilizar as atuações dos atores com vozes que buscam facilitar ou querer se aproximar das crianças espectadoras quando se diz alguma coisa. É necessário acreditarmos na convenção do próprio teatro. Pois quando nós acreditamos, as crianças nos acompanham atentamente.


O espetáculo tem a seu favor belíssimos figurinos e a coerente caracterização que só são ofuscados pelas malas um pouco modernas demais e que quebram a atmosfera que as vestimentas imprimem à ação. Da mesma maneira, o Imperador nú, mas vestido... Que se apresente de verdade, um pouco mais despido e até mesmo com a barriga falsa que o ator carrega, pois são os artifícios do teatro que também são aí revelados e percebidos com surpresa renovada pelas crianças. Não precisamos ter medo de ousar. Pois esse medo nos aprisiona num reino do teatro infantil desprovido de sua força poética.


A criança entra no jogo teatral pela porta da frente, mais fácil e mais rápido do que imaginamos. Não precisamos cenografar a sua imaginação, não precisamos fazer a decoração da paisagem. Devemos sugerir para que a operação imaginativa seja complementada pelos olhos puros, o coração sem mácula da criança espectadora, que é tão sincero e inocente, com tão apurada percepção do lúdico, quanto o menino que gritou: O teatro está nu!

Dia 18 de outubro

Espetáculo Conversa pra mais de metro

O que é um teatro de tese?
Por Walter Torres


O Grupo Identidade Teatral apresenta no FESTCAMP uma peça cujo tema e os personagens são muito oportunos para se problematizar e se refletir sobre nossa realidade social e política. Entretanto, dado ao grau de maturidade artística e de intimidade com a formulação de um texto teatral, o Grupo Identidade Teatral e o autor do texto ficam muito preso, primeiro a um modelo dramatúrgico que é a peça de tese, e, em segundo lugar, prisioneiros de uma certa concepção realista da cena que só contribui para exacerbar as características menos satisfatórias e interessantes desta escola dramatúrgica. Isso não quer dizer que o texto e o trabalho dos atores não sejam eficientes e não cumpram, satisfatoriamente, em termos comunicacionais o que se quer dizer. Porém, o trabalho pode ser aperfeiçoado, ganhar densidade e o jogo dos atores vir a ser mais nuançado.
 


O olhar do Grupo Identidade Teatral para nossa realidade é justo e correto. Aliais, muito bem vindo. As intenções do autor do texto, que são as melhores, também são pertinentes. Esse olhar e essa intenção refletem a percepção dos abusos perpetrados por políticos e dos desajustes sociais existentes na sociedade brasileira. Porém, para se escrever uma ficção, e mais precisamente uma dramaturgia, seja no formato que for, é necessário um pouco mais do que uma boa idéia na cabeça e de atores talentosos e disponíveis sobre palco.

No caso de “Conversa prá mais de metro” o título da peça já sinaliza a “tagarelice” tão pertinente ao dito teatro de tese, matriz dramatúrgica à qual a peça do Grupo Identidade Teatral se filia, talvez sem sabê-lo. De toda forma, o autor de “Conversa prá mais de metro” está na companhia de um grupo de dramaturgos seletos que também tiveram suas incursões pelo teatro de tese, porém essa produção, infelizmente, não foi o seu melhor legado.

O dito teatro de tese teria por finalidade sistematizar e injetar no formato teatral convencional uma mensagem didática. Por mensagem didática compreende-se um conteúdo imaginado, aprioristicamente, anterior a formulação da dramaturgia e da encenação. Um teatro que tem por objetivo instruir o público, um teatro que convida o espectador a uma reflexão sobre um problema, examinando-se esse problema, mais profundamente, por meio de uma situação que é apresentada dramaticamente. Entretanto, nos dias de hoje apesar desse formato ser pouco, ou quase nada, explorado pela dramaturgia produzida na atualidade, ele é sempre um modelo interessante para o aprendizado da própria dramaturgia, da sua carpintaria teatral, dos seus códigos e das suas convenções.

Em geral, o teatro de tese demonstra, exatamente, como diz seu nome, uma tese, seja ela filosófica, política, moral; e por meio desta dramatização procura conquistar a adesão do espectador, isto é, convencer o público de que sua tese está correta, e assim sendo, os espectadores podem formar um juízo objetivo sobre determinada questão. Filiam-se em alguma medida, graças ao seu desejo de discussão de problemas sociais atinentes às suas épocas algumas obras de autores, desde Alexandre Dumas Filho com sua “A Dama das Camélias” até Henrik Ibsen com sua “Casa de Bonecas”, passando por nomes como Bernard Shaw e Máximo Gorki, entre outros.

Uma das qualidades ao mesmo tempo positiva e negativa desse teatro de tese é exatamente o fluxo de um diálogo muitas vezes tagarela demais, como é o caso de “Conversa prá mais de metro”.

O drama rigoroso como foi se definindo ao longo da tradição ocidental, resumidamente, poderia ser reduzido ao conflito inter-subjetivo entre identidades ficcionais. Isso é exatamente o que ocorre em “Conversa pra mais de metro” porém de forma muito ilustrativa, ou muito explícita, sem contornos psicológicos que possam dar maiores densidades ao embate ideológico entre o político corrupto e o preso comum. A situação dramática de partida é excelente, porém o desenvolvimento desse conflito ideológico é frágil, se não for ingênuo, marcado por um excesso de didatismo que procura mostrar, por si, cada um dos personagens, ao invés de nos apresenta-los segundo um jogo dialético entre proposições distintas acerca de determinados assuntos e as contradições passíveis de serem geradas desde esse próprio fluxo. Cada personagem é uma visão de mundo. E cada personagem quer alguma coisa e é movido por algo que lhe faz agir.

Um bom texto brasileiro para se estudar o fluxo dialético da ação, do ponto de vista do diálogo seria, por exemplo, o texto de Plínio Marcos, “Dois perdidos numa noite suja” ou até mesmo “Barrela”, neste caso pela própria situação de semelhança na questão da reclusão dos personagens. Ou ainda qualquer texto de Anton Tchékov, dado ao seu aspecto existencial que caracterizam seus personagens. E ainda um texto como “Os fuzis da Senhora Carrar” de Bertold Brecht para que se observe a tomada de posição, a mudança de atitude de um personagem diante das circunstancias que lhe cercam.

Porque é ao fluxo do diálogo que deve estar ajustada uma ação dramática consistente que se realizará, completamente, ao término da representação. Momento inexistente em “Conversa prá mais de metro”, visto que na despedida, depois dos oito anos passados juntos atrás das grades, os personagens resolvem manter a mesma conversa que já se prolongara pelo tempo da detenção. Ora, a necessidade compulsiva de falar é do personagem do político ou é do autor propriamente dito, na tentativa de passar a sua mensagem? Ao longo desses anos de reclusão, que transformações podem ser percebidas no caráter dessas personagens? O que mudou em suas intimidades? Apesar de sabermos que o personagem não é uma pessoa, é um ser ficcional.

“Conversa prá mais de metro” apresenta uma excelente situação de partida, um ajustado projeto de critica social, que deve ser aprofundado e aperfeiçoado pelo estudo da dramaturgia. Certamente esse estudo reverberá em ajustes que só aperfeiçoarão a excelência da iniciativa do Grupo Identidade Teatral.


Dia 17 de outubro

Espetáculo In Conserto


Espetáculo, gag, narrativa e número
Por Walter Torres


O espetáculo “In Conserto” já é nosso conhecido. Já o assistimos em diversas ocasiões. E é sempre uma satisfação renovada, rever um espetáculo de tão longa duração. Ele nos mostra o amadurecimento dos artistas e uma certa serenidade na sua realização. A substituição de integrantes antigos por novos participantes dá uma oxigenação à cena e areja as relações criativas que num caso como este, um espetáculo de Palhaços, é fundamental.

O Teatro de Anônimo, não há dúvida, é hoje uma referência nacional significativa no âmbito do teatro de grupo. Com sua sede no Rio de Janeiro, sistematicamente, orientados por uma pesquisa de ressignificação das formas populares de expressão teatral, o Anônimo, além das atividades artísticas com seus espetáculos, desenvolve diversos projetos sócio-culturais, oficinas e atividades de capacitação, sempre sem perder de vista o universo de um teatro popular. O Grupo produz ainda o já consagrado Encontro Internacional de Palhaços: Anjos do Picadeiro, entre outros eventos de grande importância para legitimação de formas expressivas, que durante tanto tempo foram ofuscadas por uma mentalidade essencialmente “erudita”. Toda sua trajetória e reconhecimento nacional e internacional podem ser conferidos em http://www.teatrodeanonimo.com.br/

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O roteiro de “In Conserto” ‘pode ser resumido em duas partes: a primeira seria a preparação e a segunda seria a execução de um concerto, agora com “c”. Porém como estamos no universo dos Palhaços e no reino da comicidade, este concerto é um “conserto” às avessas. E para essa apresentação musical acontecer, mesmo às avessas, três figuras se esmeram ao máximo, dentro das suas lógicas particulares que geram circunstanciais conflitos, para sua realização: Seu Flôr; Prego e Buscapé.

Portanto, esse roteiro precisa narrar. E assim sendo, o roteiro não deve ser alterado a cada representação. Trata-se, é de se supor, que seja um roteiro fixado que almeja apresentar esse encontro e os conflitos entre as três figuras clownescas, desde a preparação até a execução do esperado concerto. Seria de se presumir assim um tempo e uma ação.

O espetáculo é composto por uma sucessão de gags, onde os atores inventam jogos de cena que naturalmente desafiam a percepção da realidade transgredindo os códigos sociais, mas que nem sempre esgotam essas mesmas possibilidades na direção do concerto que se quer realizar. Aqui, parece haver uma hesitação entre a elaboração da sucessão de pequenos números e/ou gags em detrimento da situação dramática em si, onde plasma essa ação cênica, para onde caminha o espetáculo.

A sucessão de pequenas situações vivida dois a dois ou partilhada a três, ou solitariamente não poderia perder a urgência e/ou o foco do e no “concerto” que se almeja realizar. Seu Flor; Prego e Buscapé ao realizarem seus jogos e ações cênicas, que geram a comicidade de cada situação inusitada, poderiam explorar esses momentos com maior profundidade e riqueza de detalhes. Cada situação pode ser examinda até o limite de seu fim, até seu esgotamento cômico, sempre sem perder de vista o foco no concerto.

Uma das cenas mais exemplares dessa “passagem rápida” está na cena onde se canta, se toca e se dança o sucesso latino “Quizás, quizás, quizás”. Aqui a lógica do Palhaço encontra um universo cujo limite é só o da imaginação. E com o histrionismo das três figuras juntas em cena a situação poderia quase vir a ser um “falso final” dado ao potencial que ali se encontra em latência. Esses momentos deixariam inclusive o tempo e a ação principal em suspensão, tamanha é a complexidade que a situação passaria a tomar graças a esses desdobramentos possíveis.

Nesse sentido, parece que a ausência de uma dramaturgia, mais rigorosa, que colaborasse na costura dos números e das gags na direção do concerto às avessas, fragiliza a narrativa que é compensada pelo enorme carisma e a comunicabilidade dos atores.

Outro aspecto que o espetáculo nos faz pensar, seria sobre a necessidade de coerência mais exata no falar dos atores. Isto é, a possível recorrência, que não existe em cena, na repetição de um modo específico de se expressarem entre si, criaria um código e estabeleceria um discurso, fundaria conseqüentemente uma língua. Este discurso, esta língua, oriunda desse gromelô falado por todos os três e entendido por eles próprios sinalizaria unidade, configuraria unicidade e coesão entre as figuras e a narrativa. Além do que, esse mesmo gromelô, à maneira do uso que é feito do apito, na cena de Buscapé, poderia vir a estabelecer uma ruptura de fato com a linguagem articulada de todos os dias, para melhor reconstruir a lógica de ação dos próprios Palhaços. Neste aspecto o rigor seria fundamental, para fazer o espectador mergulhar num universo imaginário deslocado do real pela transgressão dos próprios Palhaços.

Seu Flôr; Prego e Buscapé atuam sob o signo da síntese de uma aculturação que opera entre, o jeito carioca de ser, com seu jogo de cintura, sua malandragem e seu humor um pouco cínico e falsamente displicente, e a tradição européia, aquela das mais ilustres famílias de Palhaço. O Anônimo foi beber na fonte, por assim dizer, para realizar suas pesquisas. O Teatro de Anônimo é clown na veia.

O cômico é um fenômeno antropológico. E como acontecimento, ele não se limita a este ou aquele gênero teatral. Ele pode ser detonado por diversos procedimentos. A arte do Palhaço é só uma delas. Porém, quando essa arte ancestral, com o peso de toda a sua tradição, européia ou sul-americana, se alia a uma construção narrativa, que se quer oferecer ao espectador como um todo, como um espetáculo, do princípio ao fim, para os olhos e para os ouvidos, talvez fosse necessário pensar as partes que constituem esse todo, como diria o velho Aristóteles. Pois, via de regra, os números de Palhaço possuem uma autonomia, entretanto dentro de uma narrativa como a proposta por “In Conserto”, as partes necessitam dialogar entre si para construírem esse todo dentro do tempo e na direção da ação cênica a ser cometida, na apoteose desse delicioso e inaudito “concerto às avessas”.

Espetáculo Café Pequeno da Silva e Psiu

Animação ou Palhaçada?
Por Walter Torres

O Grupo Off-Sina existe desde 1987 e é uma companhia carioca de circo-teatro de repertório, itinerante e profissional, fundada por Richard Riguetti e Lílian Moraes. Nesses seus vinte e um anos de existência constituiu um repertório invejável com grande variedade de espetáculos e de ações afirmativas na área das Artes Cênicas na Rua. Atualmente, dentre os seus principais projetos e atividades em andamento destacam-se: a VII Edição do Projeto Palhaço na Praça; a 1a. Edição do Projeto Pelas Ruas da Cidade e o seu mais novo espetáculo de Circo-Teatro de Rua, o “Nego Beijo”. Espetáculo que rende homenagem ao imortal Benjamim de Oliveira (1870-1954), ícone da cultura teatral popular, precursor do artista de circo-teatro que fora ator, cantor, compositor e músico, iniciando sua carreira ainda muito jovem no circo Sotero que resolvera seguir.

Toda a produção e efervescência do Grupo Off-Sina podem ser consultadas com mais detalhes em http://www.offsina.com.br/inicio.htm#link ou em http://offsina.blogspot.com/

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O Espetáculo que o Grupo Off-Sina trouxe ao FESTCAMP tem por título “Café Pequeno da Silva e Psiu”. A situação inicial da apresentação se instaura pela ausência do Parceiro de Café Pequeno. Este terá que substituir o Parceiro para continuar sua apresentação. E nesse sentido, membros da platéia farão o papel desse Parceiro que falta, ao longo do espetáculo.

O espetáculo “Café Pequeno da Silva e Psiu” nos leva a refletir de maneira geral, não somente sobre esse trabalho em específico, mas sobre dois aspectos mais amplos que estão presentes na nossa atualidade teatral: o primeiro seria o papel do Palhaço e de sua atuação na rua; o segundo, seriam as questões atinentes a uma coerência da ação cênica engendrada por esse mesmo Palhaço.

Para os atores de uma sociedade urbana que não são originários de uma família circense de raiz, que sobreviveria das atividades do circo, pode-se perguntar o por que da sua adoção a esta linguagem e da sua adesão a este tipo e a esta figura. E com o intuito de dizer o que, exatamente? É verdade que o circo e o seu universo fascinam ao público infantil e adulto independente de idades, nacionalidades, sexo ou preferência partidária. O circo juntamente com a Comédia dell’Arte são duas das maiores expressões cênicas, uma das maiores fascinações, que a cultura teatral ocidental conseguiu produzir.

Entretanto, em relação aos espetáculos que se inspiram no universo do circo e em seus personagens, temos questões complexas como as das apropriações de forma e conteúdo que se misturam e se problematizam na atuação e no comportamento, por exemplo, do próprio Palhaço. Aqui as atualizações e as idealizações são tão possíveis quanto são perigosas, pois podem expressar-se ingenuamente.

Diante do que vimos na Praça do Rádio, o papel do Palhaço desempenhado na apresentação esteve centrado, muito mais, na animação a partir da apropriação/convite aos membros da platéia, que ele chama para o jogo, do que propriamente centrado na sua excentricidade, no seu absurdo, na sua virulência, na sua transgressão, na sua indignação, na sua revolta, na sua intimidade de Palhaço.

A relação do Palhaço com o Público/Espectador, convidando-o a subir ao palco ou a chegar-se ao centro da roda como ajudante dos números, é somente um dos procedimentos do vasto repertório que se pode lançar mão para o incremento da relação Palco/Platéia. Isso acontecia da mesma forma como, quando no Teatro de Revista tinha lugar o momento em que uma Vedete instalava-se, confortavelmente, no colo de um respeitável senhor das primeiras filas, provocando-o, “seduzindo-o” e criando certo embaraço para sua acompanhante; ou o instante em que o Mágico solicitava a participação de um espectador para tomar lugar como “colaborador” do ilusionista. Enfim, isso denota a vontade por uma relação mais intensa de troca, que se estabelece entre quem estaria conduzindo a apresentação, seja Palhaço, Mágico ou Vedete, e quem estaria assistindo e disponível para participar, um pouco mais ativamente da celebração do espetáculo. Em todos esses exemplos, a experiência de espectador é testada até o seu limite. Limite este que o próprio espectador deve estabelecer, e o ator reconhecer, diante de apresentações mais ou menos ousadas e intensas, como, por exemplo, às solicitações à interação nos espetáculo do Teatro Oficina.

No espetáculo apresentado, os dois grandes momentos, entretanto, foram, exatamente, os dois momentos de intervenção e transgressão do Palhaço no Real. Primeiro, a resposta ao orientar e ordenar ao motorista do caminhão que descarregasse ali, “defronte da estátua” e não noutro lugar os banheiros químicos; e o outro instante quando o Palhaço literalmente roubou o picolé laranja da mão da espectadora distraída. Ato de improvisação? Sim! Naturalmente, pois isto não estava previsto no roteiro. Esses dois momentos só atestam a habilidade e o talento de Richard Riguetti em relação aos acontecimentos periféricos para além da sua arena de atuação.

A coerência com a arte e atuação de um Palhaço, consciente da sua condição de Palhaço, que elege a rua como seu palco para sua exibição, está relacionada a uma não contradição entre as qualidades e os atributos que se espera desse mesmo Palhaço, dessa emergência que é a sua intervenção no espaço público.

O Palhaço graças a sua condição alegórica, e pela convenção que lhe é delegada pela própria sociedade, graças ao seu jogo aparentemente ilógico e caótico, pode dizer o que o cidadão normal recusa expressar. Aquele resíduo psicológico, aquele trauma, aquela injustiça que acaba sufocada e por fim recalcada dentro da própria sociedade são os conteúdos simbólicos que, quando trabalhados pelo Palhaço, pode vir a provocar as consciências dos espectadores. E quantas vezes esses conteúdos não reparados pela ação cênica do Palhaço? Falando em seu nome, mas abordando o drama-cômico do trauma ou dos fantasmas sociais coletivos, o Palhaço pode restaurar o espírito do cidadão e fazer justiça à sociedade, mas só quando não ignora o Real e não idealiza o próprio Palhaço.


Dia 16 de outubro


Espetáculo Raba da Cabra


Dentinho e a mágica do lúdico
Por Walter Torres
Desde o titulo de sua apresentação, Raba da Cabra, Dentinho propõem uma inversão. Não se trata propriamente de um palíndromo. Um palíndromo seria a propriedade atribuída a leitura tanto da direita para a esquerda, quanto da esquerda para a direita de uma palavra ou de um grupo de palavras, ou até mesmo de uma frase completa.

As letras estão penduradas na tampa da mala que Dentinho encontra. As letras descolaram da mala que, possivelmente, pertencia a um mágico que, distraidamente, a esqueceu em algum lugar da coxia, e da qual Dentinho se apropriou. E para passar o tempo, Dentinho procura realizar os números de mágica que acabam sendo improvisados à leitura do “manual do mágico” e à medida que Dentinho encontra os objetos dos números de magia.

Para realizar seus números, todo mágico precisa de um assistente, e não será diferente com o aprendiz de feiticeiro, o “Mágico-Dentinho”. E é aí que entra em campo a artimanha do Palhaço que, metido a mágico, realiza melhor em dupla ou em conjunto, aquilo que não consegue fazer sozinho, isto é, lembrar às crianças que elas são crianças, lembrar aos adultos que ainda é possível brincar.

E é aí, nesta inversão de relação com a platéia, que Dentinho propõem uma outra lógica para este espetáculo. Pois, via de regra, todo espetáculo de palhaço se organiza dentro de uma sucessão de números, desempenhados com maior ou menor destreza, com maior ou menor eficiência, com a finalidade de promover o riso. Nestes casos o espectador se defronta com a vontade do palhaço em tentar alcançar o inalcançável ou se vê confrontado, por meio de uma triangularização, às situações absurdas vividas entre dois palhaços.

Dentinho promove o lúdico em lugar do cômico. A ilustração, da situação absurda que faz o espectador normalmente rir, dá lugar a uma experiência orientada e dirigida por Dentinho que seleciona e convida os espectadores mirins e adultos para jogar e atuarem sob a sua batuta. O restante dos espectadores participa incentivando com seus aplausos a coragem daqueles, que mais ou menos inibidos e envergonhados, se arriscam, se expõem, ao atenderem o apelo do “Mágico Dentinho”. E a brincadeira dá tão certo, que tudo é feito sem nenhuma palavra. Ou melhor, talvez uma... Abracadabra! Que quando é descoberta, e escrita corretamente sobre a tampa da mala, como num passe de mágica, a apresentação se termina tão leve e rápido como começara.

Dia 15 de outubro

Espetáculo Esparrela


Eta Urubu arretado!
Por Walter Torres

A arte do teatro está intimamente relacionada ao trabalho de atuação do ator. O princípio básico mesmo do teatro sempre esteve subordinado a esta convenção, onde o ator age para nos contar uma história, e nós, espectadores, num exercício imaginativo somos convidados a nos deixarmos guiar pelas rédeas da fabulação, induzida por esse contador de histórias ancestral.

Este é o principio do espetáculo Esparrela que nos conta as admiráveis aventuras do Urubu Arquimedes capturado por Manoel. A história que nos é habilmente “vivida” pelo ator Fernando Teixeira nos é contada com extraordinária simplicidade de meios. Aqui, a fábula é contada do ponto de vista do animal aprisionado. E se num primeiro instante, o Urubu é capturado para que Manoel possa amestrá-lo, e assim fazendo, se regenerar diante da população da cidade, para onde retorna acompanhado do animal; já num segundo instante é a vez do animal de ganhar a sua liberdade, ao se apropriar do corpo, mas, sobretudo dos olhos de Manuel, que “vão vê-lo por dentro”.

As recorrentes explorações ficcionais, acerca da simbiose entre o homem e o animal constituem um vasto reservatório mitológico a ser explorado. Essas relações demonstram a intenção, no caso de Esparrela, tanto no conto quanto na sua transposição à cena, acerca das relações entre: o espírito e a matéria; o corpo e a alma; o instinto e a razão; a alegria e a tristeza; a liberdade e a prisão; o sonho e a realidade. A fabula do homem e do animal fazem alusão a constituição do sujeito, a integralização do ser, constituído assim por pulsões instintivas e discernimentos racionais. A determinação e a tenacidade, portanto a coragem, de pouco vale sem o acompanhamento valioso de um instinto, que faz agir, que impulsiona e decide rápido e célere quando a razão titubeia.

Essa bela fábula iniciática nos remete à tradição dos contadores de histórias. Entretanto, na transposição à cena de Esparrela, temos o personagem do Urubu como narrador da história, personificado pelo ator. E essa nos parece ser a primeira contradição da encenação que oscilaria entre a contação da história do “causo” e a narração da fabula. A diferença é tênue, porém as conseqüências são grandes.

O narrador, que no caso aqui é o próprio personagem do Urubu Arquimedes, nos reconta os acontecimentos que viveu e o seu “sofrimento” até o momento em que reconquista a sua liberdade. Já o Contador se dirigiria, diretamente, à audiência e contaria “a sua história” ou outra qualquer se endereçando, diretamente, aos ouvintes-espectadores.

Aqui oralidade e discurso devem ser organizados segundo uma reelaboração das vozes dos personagens e das intenções em relação à cena que se quer construir. Na encenação de Esparrela apesar da extrema habilidade do ator Fernando Teixeira no emprego da voz e do gesto, constata-se essa oscilação no registro da narrativa. Essa oscilação é reforçada pelo uso e pelo emprego de uma trilha sonora que vai ponteando a narração e de certa maneira se contrapondo à execução musical que advém da própria cena, realizada pelo ator. Essa intervenção sonora mecanica parece querer nos levar para o teatro mais convencional, aquele do personagem narrador, ao passo que a execução musical do ator em cena sugere a adesão pela arte da “contação do causo”. Haveria, portanto uma indecisão entre narrar e contar que fica encoberta pela bela atuação despojada de Fernando Teixeira, onde a exposição do corpo do ator se traduz em memória do próprio teatro.

E por fim, um outro dado que sinalizaria essa oscilação seria a administração do tempo, do ritmo da cena e da enunciação das palavras. Nesses casos, como em Esparrela, o tempo é o senhor da cena, da narrativa. Parece que o ator é pouco explorado pela direção acerca do uso do tempo, que naturalmente está condicionado pelos estados da narrativa ou da contação que devem afetar diretamente o próprio ator, e, por conseguinte, o ouvinte-espectador.

Entretanto, essa indecisão ou estranheza, entre o contar e o narrar, apesar de se apresentarem como questões interessantes de serem problematizadas entre a gente de teatro, não afeta em nenhum momento a comunicabilidade do ator com seu público. A própria configuração espacial, colocando sobre o palco os espectadores, sinalizaria uma opção pela relação de maior intimidade, de proximidade entre quem quer contar e quem quer ouvir. Mas essa configuração espacial acabaria, em certa medida, acentuando, unicamente, a proximidade do público na direção da intimidade do excelente ator.

Espetáculo A saga do sertão da Farinha Podre

Revolvendo a memória e ascendendo às consciências

Por Walter Torres

O Coletivo da Margem (CTM) de Uberlândia, liderado e dirigido por Narciso Telles, trouxe ao FESTCAP a sua primeira incursão pelo universo do teatro de rua. Trata-se de um espetáculo arrojado que na sua forma faz apelo a matrizes populares da nossa cultura onde se mesclam a assimilação do importado e a cultura religiosa. As alusões ao popular estão desde os figurinos com suas cabeças-caveiras-de-boi até a malhação do Judas; o comportamento do bloco do sujo; o Trenzinho do Caipira de Villa Lobos; etc.

Quanto à narrativa propriamente, o coletivo se atém ao fragmento, onde cada momento da ação cênica transcorre de maneira autônoma, entre as partes, num espaço específico dentro da Praça do Radio, no coração da cidade.

O ponto de partida do espetáculo é a apresentação de uma versão para peça de Sófocles, Antígona, anunciada pelo “bloco de sujo” com suas faces cobertas por máscaras de carnaval. O verdadeiro rosto do ator é revelado quando os mesmos retiram a mascara e se apresentam, informando seu nome e o personagem que irá representar ao tomar parte na adaptação da peça grega. E nesse exercício de revelação da própria identidade de cada integrante, e por que não dizer da revelação da precariedade desses improvisadores-fazedores de teatro, eles informam ainda os seus números de CPF. Essa atitude revela uma espécie de reivindicação ao fato de que o ato teatral também é um ato de cidadania, que combate a tirania e revela as desigualdades. E neste caso, brevemente, a tirania é representada por Creonte, o “ditador” que se opõem aos rituais de sepultamento para o corpo de Polinices realizados por Antígona.

Logo depois será substituído por um outro tirano. A “Tia” traveca, imperialista e ariana, calçando coturnos e de chicote na mão, com visual Dzi-Croquete, que se põem a sufocar o arcaico, dando inicio ao seu circo pós-brega com direito a desfile de moças selecionadas onde o outro, o diferente, não tem lugar e é excluído.

Esta ação cênica inicial, realizada pelo Coletivo da Margem (CTM), a qual não deixa de traduzir um conflito, é só uma espécie de apresentação dos conflitos que se desdobrarão, sempre de forma alegórica incitando o transeunte desavisado a refletir sobre sua própria condição de oprimido pelas mais diversas manifestações de controle exercidas, sobretudo pelas “figuras utópicas que representam a cidade ideal”, como não deixa de afirmar a sinopse do espetáculo.

O Coletivo da Margem (CTM) parece ter elaborado sua prévia pesquisa de campo, para realização do espetáculo, entorno dos problemas existenciais e dos conflitos sociais atinentes à própria cidade de Uberlândia, entretanto percebe-se que o “sertão da farinha podre”, e, sobretudo “a farinha podre”, pode estar por toda parte espraiada, por diversas cidades. E o pior é que nem sempre conseguimos enxergar essas violências perpetradas pela manifestação do poder e da ordem, e sem querer somos até coniventes na nossa alienação involuntária. Essas violências ganham formatos edulcorados, perucas louras, modos subliminares, para manifestarem ainda hoje com indelével desfaçatez a violência da exclusão. Sobretudo se pensarmos as relações sedimentadas pelo princípio do “homem cordial” enraizada nas nossas relações sociais. E nesse sentido, de forma alegórica o Coletivo da Margem (CTM) aborda o preconceito racial; a violência contra as mulheres; a tirania dos detentores do poder; a necessidade de criarmos santos e mitos, et.

Grande parte do teatro realizado nos anos 1960 e 1970, no Brasil, esteve dedicada a manifestar o seu protesto contra um regime ditatorial, totalitário que havia suprimido as instancias de debate público e a liberdade de expressão do cidadão. Hoje as regras do jogo parecem ter mudado e respiramos ares democráticos, e o cidadão nunca teve tantos meios de expressão à sua mão. Porém em nossas cidades, em nosso país e pelo mundo afora persiste o conflito entre valores arcaicos e valores contemporâneos. Há um choque cultural permanente. Esse choque pode ser percebido ao dobrarmos a esquina de qualquer cidade brasileira, aonde vamos tropeçando nessas realidades, que apesar de suas mazelas estão repletas de memórias e poesia.

Essa memória e essa poesia é que nos foi sugerida pelo trabalho do Coletivo da Margem (CTM) que alude sem afirmar, que indica sem determinar, pois ao optar por imagens metafóricas convida o transeunte espectador a meditar sobre seu próprio comportamento e as relações numa sociedade contemporânea que se teatraliza, ela própria, mascarando as relações de poder e afetividade, para não citarmos outras esferas relacionais.

É emblemática a ação cênica numa das cenas finais, a da cantiga popular infantil sobre Terezinha de Jesus e seus três Cavalheiros. Ressignificando o sentido da canção, o Coletivo da Margem (CTM) chama atenção para violência silenciada pela moral e pelo peso do ambiente social. E ainda operando com o principio alegórico, os “Judas” de um “Sábado de Aleluia” que estão pendurados pelas árvores da Praça do Rádio, personificam, neste momento a “perdida” Terezinha. Trata-se da personificação de um princípio, o do feminino; a personificação de uma idéia, a idéia do Outro: que três vezes é violentado e ultrajado indo ao chão; a mulher que três vezes é castigada por Pai, Irmão e Marido; a voz que três vezes é silenciada, pela família e por aquele terceiro, a quem a Terezinha da cantiga não teve outra escolha senão também lhe dar mão.


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WALTER LIMA TORRES - Ator com doutorado em Artes do Espetáculo pelo Instituto de Estudos Teatrais da Universidade de Paris III, Sorbonne Nouvelle. Residiu na França, entre 1989 e 1996, onde se aperfeiçoou fazendo vários cursos de especialização, dentre os quais: Ecole Internationale de Théâtre de Jacques Lecoq, Monika Pagneaux e Philipe Goulier. Da França, colaborou com o jornal O Correio Braziliense, escrevendo artigos e críticas de espetáculos ocorridos em Paris. Pronunciou conferências e cursos na Ecole Normale Supérieure sobre a dramaturgia brasileira do século XIX e sobre a cultura teatral brasileira de influência francesa. Coordenou o Curso de Direção Teatral da Escola de Comunicação (ECO) da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Atualmente é professor no Departamento de Artes da Universidade Federal do Paraná, UFPR.